TOM ZÉ RENASCE REMORRE RENASCE !
Tom Zé e Hermeto Pascoal: um breve retrato
Tratemos então aqui de dois grandes nomes da música de vanguarda brasileira.
Tom Zé : um músico limitado enquanto instrumentista (Tom não é um virtuose), mas muito criativo e prolífico enquanto compositor e conceitualista compromissado com a experimentação; detentor ainda de um grande refinamento poético irônico-desconstrutivo, sempre devassando e desmontando hábitos e costumes arraigados (refinamento esse, aliás, que lhe permitiu construir uma discografia impecável, repleta de canções brilhantes que na verdade, dada a sua riqueza conceitual, podem perfeitamente ser encaradas como meta-canções). Sua marca autoral dá testemunho de uma mente criadora inquieta, articulada, provocadora e extremante lúcida.
Hermeto: um músico praticamente ilimitado enquanto instrumentista (ele é um virtuose e um experimentador radical que tira som de qualquer coisa) e que ao longo de sua carreira conseguiu o grande feito de dialetizar complexidade (compassos quebrados, quiálteras, tempestades de fusas/semi-fusas, politonalidade, etc) e simplicidade (melodiosidade singela, carregada de emoção). Enquanto pensador, entretanto, Hermeto é embaraçosamente deficiente (tal como se pode facilmente constatar lendo ou assistindo as entrevistas que ele concedeu/concede para a imprensa). Pra piorar: ele cultiva um misticismo que, associado à fetichização da técnica, pode ter desdobramentos perigosíssimos (vale lembrar que esse binômio explosivo foi a espinha dorsal da estética nazi-fascista). Esse é o grande paradoxo hermetiano: ele é experimentador com os sons, mas totalmente reacionário no campo da análise estética e da crítica cultural.
Tom Zé não está sozinho na categoria “músicos criativos e não-virtuoses”. David Byrne, David Bowie, Sting, Caetano Veloso (entre tantos outros, salvas as devidas proporções e especificidades) também se enquadram perfeitamente nela: não optaram por um apurado domínio instrumental, mas sim pela via do domínio composicional, cada qual tendo construído para si uma identidade sonora marcante enquanto cancionistas.
Hermeto, por sua vez, também não está sozinho na categoria “músicos criativos e virtuoses”: Stevie Wonder, Prince e Erdal Kizilkay (e vou me deter só nesses 3, embora essa lista também seja longa) também figuram nela. Aliás, não posso deixar de enfatizar meu espanto e admiração por Stevie Wonder que, apesar da cego, toca piano, guitarra, baixo (e até mesmo bateria) com enorme fluência.
Curiosamente (e isso até merece um ensaio mais aprofundado depois), os músicos não-virtuoses são, na sua maioria, ateus ou então pelo menos agnósticos, ao passo que os virtuoses, via de regra, estão imersos no discurso místico-religioso de que se servem para explicar a “beatitude” de suas competências musicais “sobrenaturais”.
Virtuosismo (ou fetichização da técnica): um nazi-fascismo musical ?
Contra o quê se rebelaram os Punks? Contra o elitismo segregacionista que tomou conta do cenário musical em meados dos anos 70, por força do culto ao Rock Progressivo. Reparem cuidadosamente nesta claríssima distinção que estou fazendo: de um lado o Rock Progressivo, do outro o CULTO AO Rock Progressivo. Porque eu jamais cometeria a loucura de responsabilizar as bandas progressivas por qualquer tipo de campanha cultural fascistóide, uma vez que vários de seus integrantes travaram um diálogo muito fecundo e produtivo com músicos de tendência punk/new wave. O segregacionismo, portanto, foi praticado por um grande contingente de fãs de progressivo e por boa parte da crítica especializada, que cultuavam a complexidade em detrimento da simplicidade, ignorando a possibilidade salutar de dialetizá-las.
Fanáticos à parte, cabeças lúcidas entraram em ação, buscando concretizar essa dialética! Brian Eno, correndo por fora das tendências vigentes (mas servindo-se delas), foi o artífice (apoiado por David Bowie) desse diálogo entre não-virtuoses criativos e virtuoses criativos! E Robert Fripp (um dos maiores guitarristas da história do Rock e uma das figuras de liderança na cena progressiva) foi justamente o ELO que tornou possível parcerias criativas notáveis! Fripp tocou com os Talking Heads (banda de David Byrne), com David Bowie (na trilogia berlinense), Andy Summers (guitarrista do The Police), Peter Gabriel (ex-Genesis) e ainda reformulou criativamente a sonoridade do lendário e progressivo King Crimson ao associar-se com Adrian Belew (outro guitarrista espetacular: eclético, criativo, despojado e experimentador, que fez parceria com quase todos os músicos que citei anteriormente e sobretudo com Frank Zappa).
Graças à essas cabeças maravilhosas, concretizou-se a dialética entre o primitivismo punk (dionisíaco) e o eruditismo progressivo (apolíneo), consolidando as bases da cena pós-punk (New Wave e No Wave), formada por bandas formidáveis como XTC, The Cure, Siouxsie and The Banshees, The Contortions, DEVO, Midnight Oil (banda australiana cujos heróicos primórdios infelizmente a maioria das pessoas desconhece), Joy Division, U2 (a mais bem sucedida, em termos comerciais, de todas essas bandas) e várias outras!
Vale fazer aqui uma ressalva muito importante: todas essas parcerias que acabei de mencionar não se basearam JAMAIS numa piedade dos supostamente mais fortes (os virtuoses) sobre os supostamente mais fracos (os não-virtuoses). De forma alguma! A saudável base psicoafetiva que tornou possível esse somatório de forças criativas, consiste na humilde e realista consciência que tanto virtuoses quanto não-virtuoses possuem de que PRECISAM INCONTORNAVELMENTE UNS DOS OUTROS! Os virtuoses, com um profundo domínio de seus instrumentos, colocando toda essa competência à serviço do virtuosismo composicional, melódico e comunicacional/cancionista dos não-virtuoses.
Então, a pergunta que se impõe, no caso Tupiniquim, é a seguinte: se grandes músicos de Jazz (Branford Marsalis, Kenny Kirkland, Darryl Jones e Omar Hakim, todos virtuoses) se associaram à Sting (um baixista limitado, mas bom compositor, criativo e trabalhador) quando ele seguiu em carreira solo; se Robert Fripp (um gigante da guitarra) pôde se associar à David Byrne e Andy Summers (ambos guitarristas limitados tecnicamente, mas muito criativos), PORQUE HERMETO, ESTUPIDAMENTE, PREFERE QUE TOM ZÉ MORRA? PORQUE HERMETO, ESTUPIDAMENTE, NOS PRIVA DA POSSIBILIDADE DE UMA MARAVILHOSA PARCERIA ENTRE ELE E TOM ZÉ?
Seguindo a linha de “raciocínio” hermetiana, todos os demais músicos-conceitualistas que se encontram numa posição semelhante à de Tom, devem também morrer? O que seria então do cenário musical? Uma ditadura espartana formada apenas por instrumentistas virtuoses, que chacinariam os não-virtuosos (nascidos com “defeito de fabricação”)? Joseph Goebbels (ministro da cultura de Hitler), vivo fosse, adoraria a idéia! Esse culto à "perfeição" foi um dos pilares da ideologia nazista: funesta mistura de misticismo e eugenismo que, aplicada a questão da produção musical, resultou no conceito anti-humanista e segregacionista de "músico nato, natural", pertencente a uma "elite" (só os "dotados" podem tocar, enquanto os demais só podem ouvir). Estou chamando Hermeto de nazista? Não: estou chamando a atenção pro fato de que a postura reacionária de Hermeto pode sim ser confundida com a postura intolerante/segregante dos nazistas, que execraram a arte moderna em detrimento do naturalismo e do folclorismo.
O pivô: a estética plagi-recombinatória do arrastão
A defesa deliberadamente polêmica que Tom fez de uma estética plagi-recombinatória não justifica a atitude grosseira e ofensiva de Hermeto, que poderia perfeitamente, de forma conciliatória e saudavelmente provocadora, ter dito:” Discordo de Tom Zé quando ele diz que a música acabou e que de agora em diante só se pode fazer plagi-recombinações. E posso provar isso! Sabe como? Que tal eu e ele somarmos forças e assinarmos juntos um disco?”.
E se assim fosse, a música brasileira teria sido presenteada com mais um disco lendário, reunindo estes dois gigantes da criação!
Hermeto, decepcionantemente, não teve expediente mental (emocional e intelectual) pruma tal atitude. O que me deixa pasmo é que em seu costumeiro discurso místico acerca da música, ele prega que ela é universal, unificadora, pacificadora e civilizadora. Só que ao invés de buscar diálogo/dialética, ele preferiu ver Tom morto... Quanta pedreira, quantas privações Tom Zé já não passou, no período em que esteve injustamente esquecido! Hermeto pouco se importou em refletir sobre isso. E a responsabilidade sobre essa tosca incapacidade de reflexão não pode ser lançada sobre o jornalista que o entrevistou, por mais capciosa que tenha sido sua (má) intenção.
Mas o que realmente interessa aqui é examinarmos mais amiúde a questão do conceito plagi-recombinatório defendido por Tom (e execrado por Hermeto).
Cultura é ARS COMBINANDI, ou seja: cada nova geração de produtos culturais é em maior ou menor grau, derivada da geração anterior. Na música erudita esse encadeamento dialético (seja com o repertório cultural antigo seja com a produção de outros artistas contemporâneos) é assumido com total claridade (haja visto as tantas variações produzidas sobre temas alheios e ostentadas em tantos títulos de tantas obras notáveis)! No contexto da música popular brasileira, esse tipo de abordagem é praticado com grande perícia por Tom Zé (vide as canções do disco “Com defeito de fabricação” e ainda outras tantas em seus outros álbuns, dentre as quais destaco “Prazer Carnal”). No Jazz então, a técnica composicional da variação sobre temas IMPERA, nos dando mostra de um imenso e intenso rigor imaginativo e recombinador!
O prefixo “PLAGI” é totalmente desnecessário, portanto, já que todas as citações de temas alheios é feita de forma frontal, direta, em caráter de homenagem (não há roubo ou apropriação indébita)! Sobretudo porque os temas citados são reprocessados/recombinados, afirmando a força criativa do processo derivativo. Stravinsky, em sua fase dita neoclássica, nos deu brilhantes exemplos desse método paródico-desconstrutivo-reconstrutivo (em “Pulcinella” ele arrasta/recria Pergolesi, no balé “Card Games” ele brinca com temas de Rossini e Beethoven, e ainda na espetacular “Sinfonia em Dó” ele torna a homenagear Beethoven, reprocessando sua famosa 5ª sinfonia).
CODA: um louvor à brevidade eloquente
Concluirei homenageando Olivier Messiaen. Aliás, mais especificamente, enaltecendo seu “Quarteto para o fim dos tempos” (composto enquanto ele esteve prisioneiro em um campo de concetração, durante a 2ª guerra mundial). Desta obra-prima, destaco o 5º movimento (“Louange à l’Eternité de Jésus”), cuja economia sonora (agenciada pelo piano em diálogo dramático com o violoncelo) além de nos transportar para uma dimensão de reflexividade sublime, serve como lição vigorosa para todos os instrumentistas virtuoses ainda imaturamente apegados à masturbação de semi-fusas (Yamandú Costa entre eles): NUNCA, JAMAIS, a musicalidade ficará abaixo do domínio técnico sobre um dado instrumento. Ela é o princípio maior, o Motor Primordial que anima a vivacidade criativa, empregando os mais variados meios e concebendo as mais variadas formas de construção composicional. Sem ela, não é possível uma POÉTICA DAS DURAÇÕES. E sem essa poética como parâmetro, o virtuosismo instrumental se reduz a um exibicionismo vazio, alienado/alienante, conivente com o conceito de "espetáculo" que é defendido e praticado pela indústria cultural burguesa.
Então faço desse Louvor messiaenico um tributo à expressividade e a inventividade (forças vitais presentes em todos nós e que ideologia nenhuma jamais poderá pretender monopolizar ou transformar em privilégio de casta)!
Sobretudo, faço dele um tributo à eternidade de todos os artistas que mencionei aqui (Tom Zé e Hermeto Pascoal em destaque)!
Tratemos então aqui de dois grandes nomes da música de vanguarda brasileira.
Tom Zé : um músico limitado enquanto instrumentista (Tom não é um virtuose), mas muito criativo e prolífico enquanto compositor e conceitualista compromissado com a experimentação; detentor ainda de um grande refinamento poético irônico-desconstrutivo, sempre devassando e desmontando hábitos e costumes arraigados (refinamento esse, aliás, que lhe permitiu construir uma discografia impecável, repleta de canções brilhantes que na verdade, dada a sua riqueza conceitual, podem perfeitamente ser encaradas como meta-canções). Sua marca autoral dá testemunho de uma mente criadora inquieta, articulada, provocadora e extremante lúcida.
Hermeto: um músico praticamente ilimitado enquanto instrumentista (ele é um virtuose e um experimentador radical que tira som de qualquer coisa) e que ao longo de sua carreira conseguiu o grande feito de dialetizar complexidade (compassos quebrados, quiálteras, tempestades de fusas/semi-fusas, politonalidade, etc) e simplicidade (melodiosidade singela, carregada de emoção). Enquanto pensador, entretanto, Hermeto é embaraçosamente deficiente (tal como se pode facilmente constatar lendo ou assistindo as entrevistas que ele concedeu/concede para a imprensa). Pra piorar: ele cultiva um misticismo que, associado à fetichização da técnica, pode ter desdobramentos perigosíssimos (vale lembrar que esse binômio explosivo foi a espinha dorsal da estética nazi-fascista). Esse é o grande paradoxo hermetiano: ele é experimentador com os sons, mas totalmente reacionário no campo da análise estética e da crítica cultural.
Tom Zé não está sozinho na categoria “músicos criativos e não-virtuoses”. David Byrne, David Bowie, Sting, Caetano Veloso (entre tantos outros, salvas as devidas proporções e especificidades) também se enquadram perfeitamente nela: não optaram por um apurado domínio instrumental, mas sim pela via do domínio composicional, cada qual tendo construído para si uma identidade sonora marcante enquanto cancionistas.
Hermeto, por sua vez, também não está sozinho na categoria “músicos criativos e virtuoses”: Stevie Wonder, Prince e Erdal Kizilkay (e vou me deter só nesses 3, embora essa lista também seja longa) também figuram nela. Aliás, não posso deixar de enfatizar meu espanto e admiração por Stevie Wonder que, apesar da cego, toca piano, guitarra, baixo (e até mesmo bateria) com enorme fluência.
Curiosamente (e isso até merece um ensaio mais aprofundado depois), os músicos não-virtuoses são, na sua maioria, ateus ou então pelo menos agnósticos, ao passo que os virtuoses, via de regra, estão imersos no discurso místico-religioso de que se servem para explicar a “beatitude” de suas competências musicais “sobrenaturais”.
Virtuosismo (ou fetichização da técnica): um nazi-fascismo musical ?
Contra o quê se rebelaram os Punks? Contra o elitismo segregacionista que tomou conta do cenário musical em meados dos anos 70, por força do culto ao Rock Progressivo. Reparem cuidadosamente nesta claríssima distinção que estou fazendo: de um lado o Rock Progressivo, do outro o CULTO AO Rock Progressivo. Porque eu jamais cometeria a loucura de responsabilizar as bandas progressivas por qualquer tipo de campanha cultural fascistóide, uma vez que vários de seus integrantes travaram um diálogo muito fecundo e produtivo com músicos de tendência punk/new wave. O segregacionismo, portanto, foi praticado por um grande contingente de fãs de progressivo e por boa parte da crítica especializada, que cultuavam a complexidade em detrimento da simplicidade, ignorando a possibilidade salutar de dialetizá-las.
Fanáticos à parte, cabeças lúcidas entraram em ação, buscando concretizar essa dialética! Brian Eno, correndo por fora das tendências vigentes (mas servindo-se delas), foi o artífice (apoiado por David Bowie) desse diálogo entre não-virtuoses criativos e virtuoses criativos! E Robert Fripp (um dos maiores guitarristas da história do Rock e uma das figuras de liderança na cena progressiva) foi justamente o ELO que tornou possível parcerias criativas notáveis! Fripp tocou com os Talking Heads (banda de David Byrne), com David Bowie (na trilogia berlinense), Andy Summers (guitarrista do The Police), Peter Gabriel (ex-Genesis) e ainda reformulou criativamente a sonoridade do lendário e progressivo King Crimson ao associar-se com Adrian Belew (outro guitarrista espetacular: eclético, criativo, despojado e experimentador, que fez parceria com quase todos os músicos que citei anteriormente e sobretudo com Frank Zappa).
Graças à essas cabeças maravilhosas, concretizou-se a dialética entre o primitivismo punk (dionisíaco) e o eruditismo progressivo (apolíneo), consolidando as bases da cena pós-punk (New Wave e No Wave), formada por bandas formidáveis como XTC, The Cure, Siouxsie and The Banshees, The Contortions, DEVO, Midnight Oil (banda australiana cujos heróicos primórdios infelizmente a maioria das pessoas desconhece), Joy Division, U2 (a mais bem sucedida, em termos comerciais, de todas essas bandas) e várias outras!
Vale fazer aqui uma ressalva muito importante: todas essas parcerias que acabei de mencionar não se basearam JAMAIS numa piedade dos supostamente mais fortes (os virtuoses) sobre os supostamente mais fracos (os não-virtuoses). De forma alguma! A saudável base psicoafetiva que tornou possível esse somatório de forças criativas, consiste na humilde e realista consciência que tanto virtuoses quanto não-virtuoses possuem de que PRECISAM INCONTORNAVELMENTE UNS DOS OUTROS! Os virtuoses, com um profundo domínio de seus instrumentos, colocando toda essa competência à serviço do virtuosismo composicional, melódico e comunicacional/cancionista dos não-virtuoses.
Então, a pergunta que se impõe, no caso Tupiniquim, é a seguinte: se grandes músicos de Jazz (Branford Marsalis, Kenny Kirkland, Darryl Jones e Omar Hakim, todos virtuoses) se associaram à Sting (um baixista limitado, mas bom compositor, criativo e trabalhador) quando ele seguiu em carreira solo; se Robert Fripp (um gigante da guitarra) pôde se associar à David Byrne e Andy Summers (ambos guitarristas limitados tecnicamente, mas muito criativos), PORQUE HERMETO, ESTUPIDAMENTE, PREFERE QUE TOM ZÉ MORRA? PORQUE HERMETO, ESTUPIDAMENTE, NOS PRIVA DA POSSIBILIDADE DE UMA MARAVILHOSA PARCERIA ENTRE ELE E TOM ZÉ?
Seguindo a linha de “raciocínio” hermetiana, todos os demais músicos-conceitualistas que se encontram numa posição semelhante à de Tom, devem também morrer? O que seria então do cenário musical? Uma ditadura espartana formada apenas por instrumentistas virtuoses, que chacinariam os não-virtuosos (nascidos com “defeito de fabricação”)? Joseph Goebbels (ministro da cultura de Hitler), vivo fosse, adoraria a idéia! Esse culto à "perfeição" foi um dos pilares da ideologia nazista: funesta mistura de misticismo e eugenismo que, aplicada a questão da produção musical, resultou no conceito anti-humanista e segregacionista de "músico nato, natural", pertencente a uma "elite" (só os "dotados" podem tocar, enquanto os demais só podem ouvir). Estou chamando Hermeto de nazista? Não: estou chamando a atenção pro fato de que a postura reacionária de Hermeto pode sim ser confundida com a postura intolerante/segregante dos nazistas, que execraram a arte moderna em detrimento do naturalismo e do folclorismo.
O pivô: a estética plagi-recombinatória do arrastão
A defesa deliberadamente polêmica que Tom fez de uma estética plagi-recombinatória não justifica a atitude grosseira e ofensiva de Hermeto, que poderia perfeitamente, de forma conciliatória e saudavelmente provocadora, ter dito:” Discordo de Tom Zé quando ele diz que a música acabou e que de agora em diante só se pode fazer plagi-recombinações. E posso provar isso! Sabe como? Que tal eu e ele somarmos forças e assinarmos juntos um disco?”.
E se assim fosse, a música brasileira teria sido presenteada com mais um disco lendário, reunindo estes dois gigantes da criação!
Hermeto, decepcionantemente, não teve expediente mental (emocional e intelectual) pruma tal atitude. O que me deixa pasmo é que em seu costumeiro discurso místico acerca da música, ele prega que ela é universal, unificadora, pacificadora e civilizadora. Só que ao invés de buscar diálogo/dialética, ele preferiu ver Tom morto... Quanta pedreira, quantas privações Tom Zé já não passou, no período em que esteve injustamente esquecido! Hermeto pouco se importou em refletir sobre isso. E a responsabilidade sobre essa tosca incapacidade de reflexão não pode ser lançada sobre o jornalista que o entrevistou, por mais capciosa que tenha sido sua (má) intenção.
Mas o que realmente interessa aqui é examinarmos mais amiúde a questão do conceito plagi-recombinatório defendido por Tom (e execrado por Hermeto).
Cultura é ARS COMBINANDI, ou seja: cada nova geração de produtos culturais é em maior ou menor grau, derivada da geração anterior. Na música erudita esse encadeamento dialético (seja com o repertório cultural antigo seja com a produção de outros artistas contemporâneos) é assumido com total claridade (haja visto as tantas variações produzidas sobre temas alheios e ostentadas em tantos títulos de tantas obras notáveis)! No contexto da música popular brasileira, esse tipo de abordagem é praticado com grande perícia por Tom Zé (vide as canções do disco “Com defeito de fabricação” e ainda outras tantas em seus outros álbuns, dentre as quais destaco “Prazer Carnal”). No Jazz então, a técnica composicional da variação sobre temas IMPERA, nos dando mostra de um imenso e intenso rigor imaginativo e recombinador!
O prefixo “PLAGI” é totalmente desnecessário, portanto, já que todas as citações de temas alheios é feita de forma frontal, direta, em caráter de homenagem (não há roubo ou apropriação indébita)! Sobretudo porque os temas citados são reprocessados/recombinados, afirmando a força criativa do processo derivativo. Stravinsky, em sua fase dita neoclássica, nos deu brilhantes exemplos desse método paródico-desconstrutivo-reconstrutivo (em “Pulcinella” ele arrasta/recria Pergolesi, no balé “Card Games” ele brinca com temas de Rossini e Beethoven, e ainda na espetacular “Sinfonia em Dó” ele torna a homenagear Beethoven, reprocessando sua famosa 5ª sinfonia).
CODA: um louvor à brevidade eloquente
Concluirei homenageando Olivier Messiaen. Aliás, mais especificamente, enaltecendo seu “Quarteto para o fim dos tempos” (composto enquanto ele esteve prisioneiro em um campo de concetração, durante a 2ª guerra mundial). Desta obra-prima, destaco o 5º movimento (“Louange à l’Eternité de Jésus”), cuja economia sonora (agenciada pelo piano em diálogo dramático com o violoncelo) além de nos transportar para uma dimensão de reflexividade sublime, serve como lição vigorosa para todos os instrumentistas virtuoses ainda imaturamente apegados à masturbação de semi-fusas (Yamandú Costa entre eles): NUNCA, JAMAIS, a musicalidade ficará abaixo do domínio técnico sobre um dado instrumento. Ela é o princípio maior, o Motor Primordial que anima a vivacidade criativa, empregando os mais variados meios e concebendo as mais variadas formas de construção composicional. Sem ela, não é possível uma POÉTICA DAS DURAÇÕES. E sem essa poética como parâmetro, o virtuosismo instrumental se reduz a um exibicionismo vazio, alienado/alienante, conivente com o conceito de "espetáculo" que é defendido e praticado pela indústria cultural burguesa.
Então faço desse Louvor messiaenico um tributo à expressividade e a inventividade (forças vitais presentes em todos nós e que ideologia nenhuma jamais poderá pretender monopolizar ou transformar em privilégio de casta)!
Sobretudo, faço dele um tributo à eternidade de todos os artistas que mencionei aqui (Tom Zé e Hermeto Pascoal em destaque)!