TOM ZÉ RENASCE REMORRE RENASCE !
Tom Zé e Hermeto Pascoal: um breve retrato
Tratemos então aqui de dois grandes nomes da música de vanguarda brasileira.
Tom Zé : um músico limitado enquanto instrumentista (Tom não é um virtuose), mas muito criativo e prolífico enquanto compositor e conceitualista compromissado com a experimentação; detentor ainda de um grande refinamento poético irônico-desconstrutivo, sempre devassando e desmontando hábitos e costumes arraigados (refinamento esse, aliás, que lhe permitiu construir uma discografia impecável, repleta de canções brilhantes que na verdade, dada a sua riqueza conceitual, podem perfeitamente ser encaradas como meta-canções). Sua marca autoral dá testemunho de uma mente criadora inquieta, articulada, provocadora e extremante lúcida.
Hermeto: um músico praticamente ilimitado enquanto instrumentista (ele é um virtuose e um experimentador radical que tira som de qualquer coisa) e que ao longo de sua carreira conseguiu o grande feito de dialetizar complexidade (compassos quebrados, quiálteras, tempestades de fusas/semi-fusas, politonalidade, etc) e simplicidade (melodiosidade singela, carregada de emoção). Enquanto pensador, entretanto, Hermeto é embaraçosamente deficiente (tal como se pode facilmente constatar lendo ou assistindo as entrevistas que ele concedeu/concede para a imprensa). Pra piorar: ele cultiva um misticismo que, associado à fetichização da técnica, pode ter desdobramentos perigosíssimos (vale lembrar que esse binômio explosivo foi a espinha dorsal da estética nazi-fascista). Esse é o grande paradoxo hermetiano: ele é experimentador com os sons, mas totalmente reacionário no campo da análise estética e da crítica cultural.
Tom Zé não está sozinho na categoria “músicos criativos e não-virtuoses”. David Byrne, David Bowie, Sting, Caetano Veloso (entre tantos outros, salvas as devidas proporções e especificidades) também se enquadram perfeitamente nela: não optaram por um apurado domínio instrumental, mas sim pela via do domínio composicional, cada qual tendo construído para si uma identidade sonora marcante enquanto cancionistas.
Hermeto, por sua vez, também não está sozinho na categoria “músicos criativos e virtuoses”: Stevie Wonder, Prince e Erdal Kizilkay (e vou me deter só nesses 3, embora essa lista também seja longa) também figuram nela. Aliás, não posso deixar de enfatizar meu espanto e admiração por Stevie Wonder que, apesar da cego, toca piano, guitarra, baixo (e até mesmo bateria) com enorme fluência.
Curiosamente (e isso até merece um ensaio mais aprofundado depois), os músicos não-virtuoses são, na sua maioria, ateus ou então pelo menos agnósticos, ao passo que os virtuoses, via de regra, estão imersos no discurso místico-religioso de que se servem para explicar a “beatitude” de suas competências musicais “sobrenaturais”.
Virtuosismo (ou fetichização da técnica): um nazi-fascismo musical ?
Contra o quê se rebelaram os Punks? Contra o elitismo segregacionista que tomou conta do cenário musical em meados dos anos 70, por força do culto ao Rock Progressivo. Reparem cuidadosamente nesta claríssima distinção que estou fazendo: de um lado o Rock Progressivo, do outro o CULTO AO Rock Progressivo. Porque eu jamais cometeria a loucura de responsabilizar as bandas progressivas por qualquer tipo de campanha cultural fascistóide, uma vez que vários de seus integrantes travaram um diálogo muito fecundo e produtivo com músicos de tendência punk/new wave. O segregacionismo, portanto, foi praticado por um grande contingente de fãs de progressivo e por boa parte da crítica especializada, que cultuavam a complexidade em detrimento da simplicidade, ignorando a possibilidade salutar de dialetizá-las.
Fanáticos à parte, cabeças lúcidas entraram em ação, buscando concretizar essa dialética! Brian Eno, correndo por fora das tendências vigentes (mas servindo-se delas), foi o artífice (apoiado por David Bowie) desse diálogo entre não-virtuoses criativos e virtuoses criativos! E Robert Fripp (um dos maiores guitarristas da história do Rock e uma das figuras de liderança na cena progressiva) foi justamente o ELO que tornou possível parcerias criativas notáveis! Fripp tocou com os Talking Heads (banda de David Byrne), com David Bowie (na trilogia berlinense), Andy Summers (guitarrista do The Police), Peter Gabriel (ex-Genesis) e ainda reformulou criativamente a sonoridade do lendário e progressivo King Crimson ao associar-se com Adrian Belew (outro guitarrista espetacular: eclético, criativo, despojado e experimentador, que fez parceria com quase todos os músicos que citei anteriormente e sobretudo com Frank Zappa).
Graças à essas cabeças maravilhosas, concretizou-se a dialética entre o primitivismo punk (dionisíaco) e o eruditismo progressivo (apolíneo), consolidando as bases da cena pós-punk (New Wave e No Wave), formada por bandas formidáveis como XTC, The Cure, Siouxsie and The Banshees, The Contortions, DEVO, Midnight Oil (banda australiana cujos heróicos primórdios infelizmente a maioria das pessoas desconhece), Joy Division, U2 (a mais bem sucedida, em termos comerciais, de todas essas bandas) e várias outras!
Vale fazer aqui uma ressalva muito importante: todas essas parcerias que acabei de mencionar não se basearam JAMAIS numa piedade dos supostamente mais fortes (os virtuoses) sobre os supostamente mais fracos (os não-virtuoses). De forma alguma! A saudável base psicoafetiva que tornou possível esse somatório de forças criativas, consiste na humilde e realista consciência que tanto virtuoses quanto não-virtuoses possuem de que PRECISAM INCONTORNAVELMENTE UNS DOS OUTROS! Os virtuoses, com um profundo domínio de seus instrumentos, colocando toda essa competência à serviço do virtuosismo composicional, melódico e comunicacional/cancionista dos não-virtuoses.
Então, a pergunta que se impõe, no caso Tupiniquim, é a seguinte: se grandes músicos de Jazz (Branford Marsalis, Kenny Kirkland, Darryl Jones e Omar Hakim, todos virtuoses) se associaram à Sting (um baixista limitado, mas bom compositor, criativo e trabalhador) quando ele seguiu em carreira solo; se Robert Fripp (um gigante da guitarra) pôde se associar à David Byrne e Andy Summers (ambos guitarristas limitados tecnicamente, mas muito criativos), PORQUE HERMETO, ESTUPIDAMENTE, PREFERE QUE TOM ZÉ MORRA? PORQUE HERMETO, ESTUPIDAMENTE, NOS PRIVA DA POSSIBILIDADE DE UMA MARAVILHOSA PARCERIA ENTRE ELE E TOM ZÉ?
Seguindo a linha de “raciocínio” hermetiana, todos os demais músicos-conceitualistas que se encontram numa posição semelhante à de Tom, devem também morrer? O que seria então do cenário musical? Uma ditadura espartana formada apenas por instrumentistas virtuoses, que chacinariam os não-virtuosos (nascidos com “defeito de fabricação”)? Joseph Goebbels (ministro da cultura de Hitler), vivo fosse, adoraria a idéia! Esse culto à "perfeição" foi um dos pilares da ideologia nazista: funesta mistura de misticismo e eugenismo que, aplicada a questão da produção musical, resultou no conceito anti-humanista e segregacionista de "músico nato, natural", pertencente a uma "elite" (só os "dotados" podem tocar, enquanto os demais só podem ouvir). Estou chamando Hermeto de nazista? Não: estou chamando a atenção pro fato de que a postura reacionária de Hermeto pode sim ser confundida com a postura intolerante/segregante dos nazistas, que execraram a arte moderna em detrimento do naturalismo e do folclorismo.
O pivô: a estética plagi-recombinatória do arrastão
A defesa deliberadamente polêmica que Tom fez de uma estética plagi-recombinatória não justifica a atitude grosseira e ofensiva de Hermeto, que poderia perfeitamente, de forma conciliatória e saudavelmente provocadora, ter dito:” Discordo de Tom Zé quando ele diz que a música acabou e que de agora em diante só se pode fazer plagi-recombinações. E posso provar isso! Sabe como? Que tal eu e ele somarmos forças e assinarmos juntos um disco?”.
E se assim fosse, a música brasileira teria sido presenteada com mais um disco lendário, reunindo estes dois gigantes da criação!
Hermeto, decepcionantemente, não teve expediente mental (emocional e intelectual) pruma tal atitude. O que me deixa pasmo é que em seu costumeiro discurso místico acerca da música, ele prega que ela é universal, unificadora, pacificadora e civilizadora. Só que ao invés de buscar diálogo/dialética, ele preferiu ver Tom morto... Quanta pedreira, quantas privações Tom Zé já não passou, no período em que esteve injustamente esquecido! Hermeto pouco se importou em refletir sobre isso. E a responsabilidade sobre essa tosca incapacidade de reflexão não pode ser lançada sobre o jornalista que o entrevistou, por mais capciosa que tenha sido sua (má) intenção.
Mas o que realmente interessa aqui é examinarmos mais amiúde a questão do conceito plagi-recombinatório defendido por Tom (e execrado por Hermeto).
Cultura é ARS COMBINANDI, ou seja: cada nova geração de produtos culturais é em maior ou menor grau, derivada da geração anterior. Na música erudita esse encadeamento dialético (seja com o repertório cultural antigo seja com a produção de outros artistas contemporâneos) é assumido com total claridade (haja visto as tantas variações produzidas sobre temas alheios e ostentadas em tantos títulos de tantas obras notáveis)! No contexto da música popular brasileira, esse tipo de abordagem é praticado com grande perícia por Tom Zé (vide as canções do disco “Com defeito de fabricação” e ainda outras tantas em seus outros álbuns, dentre as quais destaco “Prazer Carnal”). No Jazz então, a técnica composicional da variação sobre temas IMPERA, nos dando mostra de um imenso e intenso rigor imaginativo e recombinador!
O prefixo “PLAGI” é totalmente desnecessário, portanto, já que todas as citações de temas alheios é feita de forma frontal, direta, em caráter de homenagem (não há roubo ou apropriação indébita)! Sobretudo porque os temas citados são reprocessados/recombinados, afirmando a força criativa do processo derivativo. Stravinsky, em sua fase dita neoclássica, nos deu brilhantes exemplos desse método paródico-desconstrutivo-reconstrutivo (em “Pulcinella” ele arrasta/recria Pergolesi, no balé “Card Games” ele brinca com temas de Rossini e Beethoven, e ainda na espetacular “Sinfonia em Dó” ele torna a homenagear Beethoven, reprocessando sua famosa 5ª sinfonia).
CODA: um louvor à brevidade eloquente
Concluirei homenageando Olivier Messiaen. Aliás, mais especificamente, enaltecendo seu “Quarteto para o fim dos tempos” (composto enquanto ele esteve prisioneiro em um campo de concetração, durante a 2ª guerra mundial). Desta obra-prima, destaco o 5º movimento (“Louange à l’Eternité de Jésus”), cuja economia sonora (agenciada pelo piano em diálogo dramático com o violoncelo) além de nos transportar para uma dimensão de reflexividade sublime, serve como lição vigorosa para todos os instrumentistas virtuoses ainda imaturamente apegados à masturbação de semi-fusas (Yamandú Costa entre eles): NUNCA, JAMAIS, a musicalidade ficará abaixo do domínio técnico sobre um dado instrumento. Ela é o princípio maior, o Motor Primordial que anima a vivacidade criativa, empregando os mais variados meios e concebendo as mais variadas formas de construção composicional. Sem ela, não é possível uma POÉTICA DAS DURAÇÕES. E sem essa poética como parâmetro, o virtuosismo instrumental se reduz a um exibicionismo vazio, alienado/alienante, conivente com o conceito de "espetáculo" que é defendido e praticado pela indústria cultural burguesa.
Então faço desse Louvor messiaenico um tributo à expressividade e a inventividade (forças vitais presentes em todos nós e que ideologia nenhuma jamais poderá pretender monopolizar ou transformar em privilégio de casta)!
Sobretudo, faço dele um tributo à eternidade de todos os artistas que mencionei aqui (Tom Zé e Hermeto Pascoal em destaque)!
Tratemos então aqui de dois grandes nomes da música de vanguarda brasileira.
Tom Zé : um músico limitado enquanto instrumentista (Tom não é um virtuose), mas muito criativo e prolífico enquanto compositor e conceitualista compromissado com a experimentação; detentor ainda de um grande refinamento poético irônico-desconstrutivo, sempre devassando e desmontando hábitos e costumes arraigados (refinamento esse, aliás, que lhe permitiu construir uma discografia impecável, repleta de canções brilhantes que na verdade, dada a sua riqueza conceitual, podem perfeitamente ser encaradas como meta-canções). Sua marca autoral dá testemunho de uma mente criadora inquieta, articulada, provocadora e extremante lúcida.
Hermeto: um músico praticamente ilimitado enquanto instrumentista (ele é um virtuose e um experimentador radical que tira som de qualquer coisa) e que ao longo de sua carreira conseguiu o grande feito de dialetizar complexidade (compassos quebrados, quiálteras, tempestades de fusas/semi-fusas, politonalidade, etc) e simplicidade (melodiosidade singela, carregada de emoção). Enquanto pensador, entretanto, Hermeto é embaraçosamente deficiente (tal como se pode facilmente constatar lendo ou assistindo as entrevistas que ele concedeu/concede para a imprensa). Pra piorar: ele cultiva um misticismo que, associado à fetichização da técnica, pode ter desdobramentos perigosíssimos (vale lembrar que esse binômio explosivo foi a espinha dorsal da estética nazi-fascista). Esse é o grande paradoxo hermetiano: ele é experimentador com os sons, mas totalmente reacionário no campo da análise estética e da crítica cultural.
Tom Zé não está sozinho na categoria “músicos criativos e não-virtuoses”. David Byrne, David Bowie, Sting, Caetano Veloso (entre tantos outros, salvas as devidas proporções e especificidades) também se enquadram perfeitamente nela: não optaram por um apurado domínio instrumental, mas sim pela via do domínio composicional, cada qual tendo construído para si uma identidade sonora marcante enquanto cancionistas.
Hermeto, por sua vez, também não está sozinho na categoria “músicos criativos e virtuoses”: Stevie Wonder, Prince e Erdal Kizilkay (e vou me deter só nesses 3, embora essa lista também seja longa) também figuram nela. Aliás, não posso deixar de enfatizar meu espanto e admiração por Stevie Wonder que, apesar da cego, toca piano, guitarra, baixo (e até mesmo bateria) com enorme fluência.
Curiosamente (e isso até merece um ensaio mais aprofundado depois), os músicos não-virtuoses são, na sua maioria, ateus ou então pelo menos agnósticos, ao passo que os virtuoses, via de regra, estão imersos no discurso místico-religioso de que se servem para explicar a “beatitude” de suas competências musicais “sobrenaturais”.
Virtuosismo (ou fetichização da técnica): um nazi-fascismo musical ?
Contra o quê se rebelaram os Punks? Contra o elitismo segregacionista que tomou conta do cenário musical em meados dos anos 70, por força do culto ao Rock Progressivo. Reparem cuidadosamente nesta claríssima distinção que estou fazendo: de um lado o Rock Progressivo, do outro o CULTO AO Rock Progressivo. Porque eu jamais cometeria a loucura de responsabilizar as bandas progressivas por qualquer tipo de campanha cultural fascistóide, uma vez que vários de seus integrantes travaram um diálogo muito fecundo e produtivo com músicos de tendência punk/new wave. O segregacionismo, portanto, foi praticado por um grande contingente de fãs de progressivo e por boa parte da crítica especializada, que cultuavam a complexidade em detrimento da simplicidade, ignorando a possibilidade salutar de dialetizá-las.
Fanáticos à parte, cabeças lúcidas entraram em ação, buscando concretizar essa dialética! Brian Eno, correndo por fora das tendências vigentes (mas servindo-se delas), foi o artífice (apoiado por David Bowie) desse diálogo entre não-virtuoses criativos e virtuoses criativos! E Robert Fripp (um dos maiores guitarristas da história do Rock e uma das figuras de liderança na cena progressiva) foi justamente o ELO que tornou possível parcerias criativas notáveis! Fripp tocou com os Talking Heads (banda de David Byrne), com David Bowie (na trilogia berlinense), Andy Summers (guitarrista do The Police), Peter Gabriel (ex-Genesis) e ainda reformulou criativamente a sonoridade do lendário e progressivo King Crimson ao associar-se com Adrian Belew (outro guitarrista espetacular: eclético, criativo, despojado e experimentador, que fez parceria com quase todos os músicos que citei anteriormente e sobretudo com Frank Zappa).
Graças à essas cabeças maravilhosas, concretizou-se a dialética entre o primitivismo punk (dionisíaco) e o eruditismo progressivo (apolíneo), consolidando as bases da cena pós-punk (New Wave e No Wave), formada por bandas formidáveis como XTC, The Cure, Siouxsie and The Banshees, The Contortions, DEVO, Midnight Oil (banda australiana cujos heróicos primórdios infelizmente a maioria das pessoas desconhece), Joy Division, U2 (a mais bem sucedida, em termos comerciais, de todas essas bandas) e várias outras!
Vale fazer aqui uma ressalva muito importante: todas essas parcerias que acabei de mencionar não se basearam JAMAIS numa piedade dos supostamente mais fortes (os virtuoses) sobre os supostamente mais fracos (os não-virtuoses). De forma alguma! A saudável base psicoafetiva que tornou possível esse somatório de forças criativas, consiste na humilde e realista consciência que tanto virtuoses quanto não-virtuoses possuem de que PRECISAM INCONTORNAVELMENTE UNS DOS OUTROS! Os virtuoses, com um profundo domínio de seus instrumentos, colocando toda essa competência à serviço do virtuosismo composicional, melódico e comunicacional/cancionista dos não-virtuoses.
Então, a pergunta que se impõe, no caso Tupiniquim, é a seguinte: se grandes músicos de Jazz (Branford Marsalis, Kenny Kirkland, Darryl Jones e Omar Hakim, todos virtuoses) se associaram à Sting (um baixista limitado, mas bom compositor, criativo e trabalhador) quando ele seguiu em carreira solo; se Robert Fripp (um gigante da guitarra) pôde se associar à David Byrne e Andy Summers (ambos guitarristas limitados tecnicamente, mas muito criativos), PORQUE HERMETO, ESTUPIDAMENTE, PREFERE QUE TOM ZÉ MORRA? PORQUE HERMETO, ESTUPIDAMENTE, NOS PRIVA DA POSSIBILIDADE DE UMA MARAVILHOSA PARCERIA ENTRE ELE E TOM ZÉ?
Seguindo a linha de “raciocínio” hermetiana, todos os demais músicos-conceitualistas que se encontram numa posição semelhante à de Tom, devem também morrer? O que seria então do cenário musical? Uma ditadura espartana formada apenas por instrumentistas virtuoses, que chacinariam os não-virtuosos (nascidos com “defeito de fabricação”)? Joseph Goebbels (ministro da cultura de Hitler), vivo fosse, adoraria a idéia! Esse culto à "perfeição" foi um dos pilares da ideologia nazista: funesta mistura de misticismo e eugenismo que, aplicada a questão da produção musical, resultou no conceito anti-humanista e segregacionista de "músico nato, natural", pertencente a uma "elite" (só os "dotados" podem tocar, enquanto os demais só podem ouvir). Estou chamando Hermeto de nazista? Não: estou chamando a atenção pro fato de que a postura reacionária de Hermeto pode sim ser confundida com a postura intolerante/segregante dos nazistas, que execraram a arte moderna em detrimento do naturalismo e do folclorismo.
O pivô: a estética plagi-recombinatória do arrastão
A defesa deliberadamente polêmica que Tom fez de uma estética plagi-recombinatória não justifica a atitude grosseira e ofensiva de Hermeto, que poderia perfeitamente, de forma conciliatória e saudavelmente provocadora, ter dito:” Discordo de Tom Zé quando ele diz que a música acabou e que de agora em diante só se pode fazer plagi-recombinações. E posso provar isso! Sabe como? Que tal eu e ele somarmos forças e assinarmos juntos um disco?”.
E se assim fosse, a música brasileira teria sido presenteada com mais um disco lendário, reunindo estes dois gigantes da criação!
Hermeto, decepcionantemente, não teve expediente mental (emocional e intelectual) pruma tal atitude. O que me deixa pasmo é que em seu costumeiro discurso místico acerca da música, ele prega que ela é universal, unificadora, pacificadora e civilizadora. Só que ao invés de buscar diálogo/dialética, ele preferiu ver Tom morto... Quanta pedreira, quantas privações Tom Zé já não passou, no período em que esteve injustamente esquecido! Hermeto pouco se importou em refletir sobre isso. E a responsabilidade sobre essa tosca incapacidade de reflexão não pode ser lançada sobre o jornalista que o entrevistou, por mais capciosa que tenha sido sua (má) intenção.
Mas o que realmente interessa aqui é examinarmos mais amiúde a questão do conceito plagi-recombinatório defendido por Tom (e execrado por Hermeto).
Cultura é ARS COMBINANDI, ou seja: cada nova geração de produtos culturais é em maior ou menor grau, derivada da geração anterior. Na música erudita esse encadeamento dialético (seja com o repertório cultural antigo seja com a produção de outros artistas contemporâneos) é assumido com total claridade (haja visto as tantas variações produzidas sobre temas alheios e ostentadas em tantos títulos de tantas obras notáveis)! No contexto da música popular brasileira, esse tipo de abordagem é praticado com grande perícia por Tom Zé (vide as canções do disco “Com defeito de fabricação” e ainda outras tantas em seus outros álbuns, dentre as quais destaco “Prazer Carnal”). No Jazz então, a técnica composicional da variação sobre temas IMPERA, nos dando mostra de um imenso e intenso rigor imaginativo e recombinador!
O prefixo “PLAGI” é totalmente desnecessário, portanto, já que todas as citações de temas alheios é feita de forma frontal, direta, em caráter de homenagem (não há roubo ou apropriação indébita)! Sobretudo porque os temas citados são reprocessados/recombinados, afirmando a força criativa do processo derivativo. Stravinsky, em sua fase dita neoclássica, nos deu brilhantes exemplos desse método paródico-desconstrutivo-reconstrutivo (em “Pulcinella” ele arrasta/recria Pergolesi, no balé “Card Games” ele brinca com temas de Rossini e Beethoven, e ainda na espetacular “Sinfonia em Dó” ele torna a homenagear Beethoven, reprocessando sua famosa 5ª sinfonia).
CODA: um louvor à brevidade eloquente
Concluirei homenageando Olivier Messiaen. Aliás, mais especificamente, enaltecendo seu “Quarteto para o fim dos tempos” (composto enquanto ele esteve prisioneiro em um campo de concetração, durante a 2ª guerra mundial). Desta obra-prima, destaco o 5º movimento (“Louange à l’Eternité de Jésus”), cuja economia sonora (agenciada pelo piano em diálogo dramático com o violoncelo) além de nos transportar para uma dimensão de reflexividade sublime, serve como lição vigorosa para todos os instrumentistas virtuoses ainda imaturamente apegados à masturbação de semi-fusas (Yamandú Costa entre eles): NUNCA, JAMAIS, a musicalidade ficará abaixo do domínio técnico sobre um dado instrumento. Ela é o princípio maior, o Motor Primordial que anima a vivacidade criativa, empregando os mais variados meios e concebendo as mais variadas formas de construção composicional. Sem ela, não é possível uma POÉTICA DAS DURAÇÕES. E sem essa poética como parâmetro, o virtuosismo instrumental se reduz a um exibicionismo vazio, alienado/alienante, conivente com o conceito de "espetáculo" que é defendido e praticado pela indústria cultural burguesa.
Então faço desse Louvor messiaenico um tributo à expressividade e a inventividade (forças vitais presentes em todos nós e que ideologia nenhuma jamais poderá pretender monopolizar ou transformar em privilégio de casta)!
Sobretudo, faço dele um tributo à eternidade de todos os artistas que mencionei aqui (Tom Zé e Hermeto Pascoal em destaque)!
6 Comentários:
Marlos meu camarada!!!É uma honra poder ler tal preciosidade da qual a opnião eu compartilho!Vc traduziu nestas tão bem traçadas linhas, tudo o que HERMETO não conseguiu traduzir no dia em que respondeu "DE PINTO MOLE QUERENDO PARECER DURO", à TOM ZÉ!!!Por muitas vezes não temos capacidade intelectual e emocional para digerirmos determinada situação, porém, esta era uma situação bastante racional, na qual falou mais alto uma postura retrógrada e antiga de alguém que se acha novo com seu mesmo fazer de sempre, enqto acabou ficando mais uma vez de lado, o novo, o inesperado,o enérgico e transcedental-concreto grito de TOM ZÉ!!!! Parabéns "cumpadre"!
RODRIGO BOTROS
PS: ESTE CORRIGE O RPIMEIRO QUE FOI COM ERROS DE DIGITAÇÃO!
Companheiro Marlos,
Muito bom ler essa sua opinião. Para mim, que sou um zero à esquerda em teoria musical - aliás, sou apenas um apreciador de música -, foi MUITO informativo seu texto. Como sempre, nos presenteia com suas opiniões translúcidas (hehehe). É realmente uma pena essa pendenga do Hermeto com o Tom Zé - também há o movimento inverso? -, que são músicos que aprecio. (...) O movimento dialético que você sugeriu é fundamental para que o Brasil continue dando show de bola em música no mundo. Muito obrigado pelo texto! Continue escrevendo. Volte a escrever no seu blog e nos presenteie com temas múltiplos: dos mais cotidianos aos mais específicos! Sempre que me for possível, lerei com muito prazer. Um abraço; até mais cara!
1°Parabéns pelo post, Marlos. Muito bom mesmo. Confesso não conhecer a terça parte dos nomes estrangeiros que vc citou, mas trazendo-os à cena tupiniquim, pude compreender a proposta
2°me passa o link/arquivo/oquequerqueseja onde registrou-se o desejo de Hermeto Pascoal cogitando a possibilidade da morte do Tom. Tô louco pra ler.
3°Muuuito obrigado por me ensinar a mecher na last éfeeme, éra tudo o que eu estava procurando há anos. Sem nenhum exagero. Conheci inúmeras bandas sensacionais.
4°Continue enviando os novos posts!!!
Ei Marlos. Já havia passado por aqui e lido esse presente teu pra nós admiradores tanto de Tom Zé quanto de Hermeto. Então fiquei com teu texto zumbindo em meus pensamentos uns dias aqui e lembrei..
... que certa vez presenciei um workshop do Tom Zé e um do Hermeto na sequência de dois dias aqui no CCBB em Sampa. Se não me engano num evento comemorativo do aniversário de São Paulo. Eu andava à toa naqueles dias. Ê tempo bom!
Enfim, teu texto e essa pendenga toda me refrescaram a memória. Como não sou música e estava lá de curiosa só fiquei observando e curtindo aquela conversa de músico consagrado papeando com jovens músicos que queriam ser consagrados e de conselho e coisa e tal.
A minha impressão foi de que o papo do Hermeto caminhava pela idéia divina do dom através de suas chaleiras e outras panelas que de fato parecem mágicas através daquele virtuosismo místico musical. Já Tom Zé fazia a linha profana e desmistificadora, um herege do esmeril que reforçava a idéia de uma música humana feita de homens e para homens. Dois monstros da criatividade musical brasileira exportação tipo A.
Miticamente penso que Tom Zé incomoda os deuses justamente por essa sua postura de Prometeu ladrão do fogo dos sons e daí que nada mais compreensível que Hermeto e outros deuses estejam o tempo todo querendo castigá-lo e até mesmo matá-lo.
Mas tem jeito não,Tom Zé é um sobrevivente há 30 mil anos e já será lembrado no panteão dos deuses musicais como o representante dessa nossa vontade tão humana de fazer um som e pela sua audácia em divulgá-lo como forma de evolução.
********************************
No mais, teu texto é pra imprimir e ler de lápis na mão fazendo grifos tantas são as informações e a belezura do tecido que ele borda. Sem contar esse som aqui, um achado! Te adoro Marlos.
Bjcas Cricas e da Cris também.
Compadre Marlos, antes de ler o comentário da Crica eu já tinha mesmo imprimido seu texto para lê-lo calmamente, grifando, anotando etc. Confesso que a tela do computador me cansa um pouco. Enfim, com ele nas mãos, posso lê-lo e relê-lo quando quiser não é?
Seu texto emociona meu velho. Faz lembrar tantos e tantos fazedores de músicas ou canções que não sabem sequer ler uma clave de sol mas que nem por isso deixam de mostrar sua genialidade.
Deixa eu te contar uma história: Sempre escutei um papo aqui em Aracaju que todo mundo que queria ser 'cantor de verdade' tinha que fazer aula de canto com uma estrangeira que mora aqui. Aí passei a observar que, com o tempo, foram se perdendo entre esses cantores as suas indiossincrasias - aquilo que justamente os diferenciavam entre si- e a diferença entre eles passou a ser quase somente o timbre da sua voz. E, ao meu ver, é justamente nesse momento que o cru, o selvagem, o não-lapidado se destaca. É o que diferencia uma banda pré-fabricada por produtores de uma banda lá do interior de Pernambuco que não toca em rádio, por exemplo.
Outra coisa que me intriga, é aquele negócio de se exigir carteirinha da Ordem dos músicos pra ter que subir em palcos. Mas aí já é outro papo que espero que você nos brinde com um texto sobre isso.
Falando francamente, Hermeto perdeu a grande oportunidade de ficar calado. Aliás, é por isso mesmo que ele não canta, só toca.
Abraços e parabéns pela excelência do texto e das idéias ali contidas!
Semana passada quando comecei a ler seu texto fiquei com medo de me perder e não entender nada. Mas é tão gostosa a sensação de chegar ao final dessa iluminação e dizer, "enfim, é isso mesmo"! Lendo os comentários, completamos tudo.
Gosto muito do Hermeto e me apaixonei pelo Tom Zé. A Crica definiu bem: o Hermeto é um deus mimado e orgulhoso lutando contra a demasiada humanidade do artista em todos os poros, Tom Zé. Entre deuses e humanos escolho os dois, cada um para um momento. Mas se fosse pensar na necessidade do mundo olhar-se, reconhecendo nossas infinitas possibilidades, adivinha? Tom Zé é o nosso redentor!
Hermeto está perdoado, não o perdão do entendimento ao que disse, mas da complacência que temos com aqueles que amamos e aceitamos as humanas limitações.(Hermeto, peço licença, mas aqui você volta a ser como nós).
OBRIGADA, MARLOS!
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